Estratégias para reuso de água em indústrias de alimentos e bebidas sem comprometer a qualidade e a segurança do produto final

Estratégias para reuso de água em indústrias de alimentos e bebidas sem comprometer a qualidade e a segurança do produto final

Por que o reuso de água é um tema crítico em alimentos e bebidas?

Indústrias de alimentos e bebidas dependem de água em praticamente todas as etapas: matéria-prima, limpeza, geração de vapor, refrigeração, utilidades e serviços. Ao mesmo tempo, são um dos segmentos mais pressionados por órgãos reguladores, clientes e consumidores em relação à segurança de produto e ao uso responsável de recursos naturais.

Surge então a pergunta-chave: é possível aumentar o reuso de água sem abrir nenhuma brecha para riscos microbiológicos, químicos ou de corpo estranho no produto final? A resposta é sim – desde que o reuso seja planejado com critérios técnicos claros, barreiras múltiplas de proteção e integração com os sistemas de qualidade e segurança de alimentos (APPCC/HACCP, BPF, FSSC 22000, etc.).

O objetivo deste artigo é mostrar, de forma prática, como estruturar estratégias de reuso em indústrias de alimentos e bebidas, apontando:

  • quais usos são mais seguros;
  • quais exigem maior cuidado;
  • quais devem ser evitados;
  • quais tecnologias e controles são necessários para que o reuso não comprometa a segurança nem a qualidade do produto final.

Regulações e limites: até onde o reuso pode ir?

Antes de pensar em tecnologia de tratamento, é essencial entender o “campo de jogo” regulatório. Alguns pontos-chave para o contexto brasileiro:

  • Água de consumo humano e ingrediente de alimento: deve atender aos padrões de potabilidade estabelecidos pelo Ministério da Saúde (Portarias de Consolidação n° 5/2017 e atualizações) e às exigências de ANVISA e MAPA, dependendo do tipo de produto.
  • Água usada em contato indireto com alimentos (por exemplo, geração de vapor para aquecimento indireto, água de lavagem externa de embalagens, CIP de circuitos fechados): em geral, espera-se padrões equivalentes à água potável, ou controles que garantam que não haja migração de contaminantes para o produto.
  • Água de uso industrial não ligado ao processo (torres de resfriamento, sistemas de combate a incêndio, irrigação de áreas verdes, lavagem de pisos externos, etc.): aqui há maior espaço para reuso não potável, desde que respeitados requisitos de saúde ocupacional, corrosão/incrustação e riscos de aerossóis.

Normas técnicas como a ABNT NBR 13.969 e a ABNT NBR 15.784 trazem referências de classes de água de reuso e seus parâmetros, que podem ser usadas como base para critérios internos. Além disso, diretrizes internacionais (OMS, FAO, Codex Alimentarius) ajudam a balizar decisões para exportadores.

Ponto importante: usar efluente tratado diretamente como água de processo ou ingrediente é, na prática, incompatível com os requisitos de segurança de alimentos. Quando falamos em reuso próximo ao produto, o caminho seguro é outro: reuso interno de água de alta qualidade (por exemplo, permeados, condensados, água de enxágue final) e não de efluente sanitário ou misto, mesmo que tratado.

Mapeamento de fluxos: onde está o potencial real de reuso?

O passo mais negligenciado – e o mais importante – é o mapeamento detalhado de onde a água entra, onde sai e com que qualidade. Sem isso, o reuso vira aposta, não decisão técnica.

Um bom diagnóstico inclui:

  • Matriz de usos da água: identificar, em planta, todos os pontos principais:
    • água de processo (ingrediente, formulação, cocção);
    • lavagem de matérias-primas;
    • CIP e COP (limpezas);
    • torres de resfriamento e caldeiras;
    • lavagem de embalagens;
    • lavagem de pisos internos e externos;
    • serviços sanitários.
  • Matriz de efluentes/descargas: identificar correntes com maior potencial de reuso:
    • água de enxágue final de CIP (baixa carga, normalmente quase potável);
    • condensados de evaporadores e secadores (alto potencial);
    • blowdown de caldeiras (boa qualidade química, pode exigir apenas polimento);
    • blowdown de torres (maior cuidado com microbiologia e sais);
    • água de rejeito de osmose reversa (RO);
    • águas de lavagem de garrafas e caixas, dependendo da contaminação.
  • Caracterização mínima de cada corrente potencial:
    • parâmetros físico-químicos (pH, condutividade, sólidos, dureza, DQO/DBO, cloretos, etc.);
    • parâmetros microbiológicos (coliformes, E. coli, Pseudomonas, contagem total);
    • variabilidade ao longo do dia/turno.

Com essa visão, fica mais fácil aplicar a lógica: água de melhor qualidade, vinda de usos mais “limpos”, tem maior potencial de reuso em aplicações internas de maior valor agregado.

Estratégias seguras de reuso por tipo de aplicação

Uma maneira prática de evitar riscos é classificar os usos da água em três grupos, do ponto de vista de segurança de alimentos:

  • Grupo A – Contato direto com o produto
  • Grupo B – Contato indireto ou próximo (superfícies, embalagens, utilidades)
  • Grupo C – Sem contato com o produto nem com superfícies higienizadas

Vamos ver, na prática, onde o reuso faz mais sentido.

Reuso em aplicações sem contato com o produto (Grupo C)

Aqui está o “low hanging fruit” da maioria das indústrias de alimentos e bebidas. Exemplos típicos:

  • lavagem de pisos externos e áreas de tráfego de veículos;
  • sistemas de combate a incêndio;
  • irrigação de jardins e áreas verdes;
  • lavagem de caminhões (parte externa);
  • torres de resfriamento (em alguns casos, como make-up parcial).

Nesses usos, a água de reuso pode ser proveniente de:

  • efluente tratado em ETE com polimento adicional (filtração, desinfecção);
  • rejeito de osmose reversa;
  • blowdown de torres (após avaliação de sais e microbiologia);
  • parte da água de enxágue de processos, quando segregada.

Mesmo sem contato com o produto, é importante controlar:

  • risco ocupacional (aerossóis, Legionella, odores);
  • corrosão e incrustação em equipamentos (torres, bombas, tubulações);
  • impacto em áreas externas (manchas, odores, atração de vetores).

Reuso em aplicações próximas, porém sem contato direto (Grupo B)

Aqui entram usos mais sensíveis, nos quais a água não toca o produto, mas se aproxima do ambiente de produção ou superfícies higienizadas, por exemplo:

  • enxágue inicial de equipamentos antes do CIP;
  • pré-lavagem de caixas, engradados e pallets (quando há enxágue final com água potável);
  • água de reposição (make-up) de caldeiras e sistemas fechados de aquecimento, com barreira física robusta entre vapor/água e produto;
  • lavagem de pisos internos (em áreas não classificadas de alto risco).

Para esses usos, é viável aproveitar:

  • água de enxágue final de CIP (reuso em enxágues iniciais);
  • condensados de evaporadores e secadores, com polimento (filtração, desinfecção);
  • rejeito de osmose reversa (para caldeiras, com ajustes na química de tratamento).

O ponto crucial neste grupo é a gestão rigorosa das barreiras de segurança:

  • barreira física clara entre água de reuso e água potável (tubulações separadas, trilhas identificadas, válvulas com cadeado ou intertravamento);
  • pontos de enxágue final sempre com água potável ou água cumprindo padrão interno equivalente à potabilidade;
  • monitoramento microbiológico sustentado (plano de amostragem baseado em risco, com limites de ação e de alarme bem definidos).

Reuso em contato direto com o produto (Grupo A): onde o cuidado é máximo

De forma geral, não se recomenda o uso de água de reuso como ingrediente ou em contato direto com o produto, mesmo que a água tenha sido tratada até níveis de potabilidade. Isso porque:

  • a rastreabilidade e a rastreação de riscos torna-se muito mais complexa;
  • a variabilidade inerente das correntes de reuso aumenta a probabilidade de desvios;
  • a percepção de risco por parte de clientes, certificadoras e consumidores é significativamente maior.

Existe, porém, uma situação específica frequentemente viável: reaproveitamento de água de alta qualidade gerada dentro do próprio processo, por exemplo:

  • condensados de evaporação de leite, sucos ou açúcar, tratados e polidos até atender a padrão de água potável;
  • retorno de água de enxágue final de garrafas em linhas de bebidas, em sistema fechado e com tratamento robusto, para reuso em estágios anteriores de enxágue (não no enxágue final).

Nesses casos, a chave é: enxergar essa água como uma “nova fonte” que precisa cumprir, de forma comprovada, todos os requisitos de água de processo. Isso implica:

  • tratamento com múltiplas barreiras (por exemplo, filtração + carvão ativado + osmose reversa + desinfecção UV + dosagem de desinfetante);
  • monitoramento online de parâmetros críticos (condutividade, TOC, cloro residual, SDI, etc.);
  • validação documental com base em riscos (APPCC aplicado à água);
  • aprovação explícita em conjunto com Qualidade, Segurança de Alimentos e, quando aplicável, time regulatório.

Tecnologias de tratamento: construindo barreiras múltiplas

Não existe uma única tecnologia “mágica” para viabilizar o reuso. O que funciona na prática é combinar etapas de tratamento em série, cada uma atacando um tipo de risco. Um arranjo típico para indústrias de alimentos e bebidas pode incluir:

  • Pré-tratamento físico:
    • grades, peneiras, filtros de areia ou cartucho para remoção de sólidos;
    • flotadores ou decantadores, quando há óleos/graxas e sólidos sedimentáveis.
  • Tratamento biológico (quando se parte de efluente):
    • lodos ativados, MBR, MBBR, etc., para remoção de matéria orgânica;
    • objetivo: reduzir DBO/DQO e carga microbiológica.
  • Polimento físico-químico:
    • filtração em mídia (areia, antracito);
    • carvão ativado (remoção de compostos orgânicos, cor, odor);
    • ablandadores (remoção de dureza, quando aplicável).
  • Membranas:
    • microfiltração e ultrafiltração (barreiras microbiológicas);
    • nanofiltração ou osmose reversa (remoção de sais, orgânicos de baixo peso molecular).
  • Desinfecção:
    • cloro, dióxido de cloro, ozônio ou peróxido, conforme compatibilidade com o processo;
    • UV como barreira adicional, principalmente para águas de maior criticidade.

Do ponto de vista de segurança, o mais importante não é ter a tecnologia de última geração, mas sim:

  • garantir redundância (barreiras em série, não uma única etapa crítica);
  • ter monitoramento e manutenção disciplinados (membranas limpas, desinfetante em faixa, filtros regenerados);
  • definir claramente o ponto de corte entre o que é “água potável/segura para processo” e o que é apenas “água de reuso não potável”.

Integrando o reuso ao APPCC e à gestão da qualidade

Na indústria de alimentos e bebidas, qualquer alteração em água precisa conversar com o sistema de gestão existente. Algumas boas práticas:

  • Tratar a água de reuso como um “ponto do fluxograma” no APPCC, mapeando:
    • perigos biológicos, químicos e físicos;
    • medidas preventivas;
    • pontos críticos de controle (PCC) e pontos de controle (PC);
    • limites críticos (por exemplo, cloro residual mínimo, contagem microbiológica máxima).
  • Atualizar procedimentos de limpeza (CIP/COP) incorporando o uso de água de reuso em etapas iniciais e garantindo que o enxágue final continue com água potável.
  • Treinar operadores, manutenção e equipe de limpeza para que entendam:
    • onde pode e onde não pode ser usada água de reuso;
    • como identificar tubulações e pontos de uso corretos;
    • quais são as consequências de desvios.
  • Formalizar a separação de redes em planta (cores, etiquetas, diagramas atualizados), eliminando qualquer risco de conexão cruzada entre redes de água potável e de reuso.

Passo a passo para implantar um projeto de reuso sem sustos

Resumindo a abordagem prática, um roteiro funcional é:

  • 1. Diagnóstico de consumo e geração
    • mapear usos, fontes e efluentes;
    • identificar “pontos nobres” de reuso (condensados, enxágues finais, rejeitos limpos).
  • 2. Classificação de riscos por aplicação
    • separar usos em Grupos A, B e C;
    • definir “zonas proibidas” para reuso (por exemplo, água de ingrediente, enxágue final de garrafas, etc.).
  • 3. Definição de metas
    • redução percentual de consumo de água potável;
    • redução de descarte de efluentes;
    • prazos e fases (piloto, ampliação, consolidação).
  • 4. Engenharia do sistema de reuso
    • selecionar tecnologias de tratamento por corrente e por uso pretendido;
    • projetar tanques de equalização, linhas dedicadas, pontos de amostragem;
    • prever instrumentação para monitoramento (online + laboratório).
  • 5. Validação
    • testes em escala piloto ou parcial;
    • amostragem intensiva no início para mapear variabilidade;
    • ajuste fino de parâmetros operacionais.
  • 6. Integração com sistemas de gestão
    • atualizar APPCC, BPF, POPs, instruções de trabalho;
    • treinar pessoas-chave;
    • definir plano de auditorias internas e de verificação.
  • 7. Monitoramento contínuo
    • acompanhamento de indicadores (m³ de água potável economizados, % de reuso por área, custo por m³ tratado);
    • revisão periódica de riscos com base em incidentes, quase-acidentes e mudanças de processo.

Erros comuns e boas práticas observadas em indústrias brasileiras

Na prática de consultoria e acompanhamento de projetos, alguns padrões se repetem.

Erros frequentes:

  • focar primeiro na tecnologia (“quero um sistema de osmose reversa”) e só depois pensar onde a água tratada será usada;
  • misturar todas as correntes de efluente antes de pensar em reuso, perdendo oportunidades de reuso de água relativamente limpa;
  • não envolver a área de Qualidade e Segurança de Alimentos desde o início, gerando resistência ou retrabalho;
  • subdimensionar o esforço de operação e manutenção (sistemas que “funcionam no papel”, mas não se sustentam no dia a dia);
  • não documentar de forma clara as restrições de uso de água de reuso, abrindo espaço para improvisos em campo.

Boas práticas que fazem diferença:

  • começar por projetos-piloto em usos de baixo risco (Grupo C), demonstrando ganhos rápidos e construindo confiança interna;
  • projetar desde o início o sistema de medição – hidrômetros, medidores em linha, relatórios mensais – para acompanhar os resultados;
  • segregar correntes na fonte (por exemplo, separar enxágue final de CIP de enxágues grossos), facilitando o tratamento e aumentando a qualidade da água de reuso;
  • definir um “dono do sistema de reuso” na planta (geralmente Engenharia de Utilidades ou Meio Ambiente), mas com governança compartilhada com Qualidade;
  • aproveitar o projeto de reuso para revisar também consumo específico, vazamentos e oportunidades de redução na fonte – o m³ mais barato é aquele que não precisa ser usado nem tratado.

Benefícios práticos: mais do que economia de água

Quando bem implementado, o reuso de água em indústrias de alimentos e bebidas traz retornos em múltiplas frentes:

  • Operacional:
    • redução da dependência de fontes externas (poços, rede pública);
    • maior resiliência em períodos de seca ou racionamento;
    • possibilidade de estabilizar a qualidade da água de processo, usando linhas de polimento dedicadas.
  • Econômico:
    • redução de custos com compra de água;
    • menor volume de efluente a tratar e a lançar (taxas e tarifas menores);
    • ganhos indiretos pela otimização de utilidades (melhor desempenho de torres, caldeiras, trocadores).
  • Regulatório e de imagem:
    • alinhamento com exigências de clientes e certificadoras ligadas à sustentabilidade;
    • melhor posicionamento em relatórios ESG e metas de redução de pegada hídrica;
    • menor exposição a penalidades e restrições de órgãos ambientais em bacias críticas.

O ponto central é que não existe oposição entre reuso de água e segurança de alimentos. O que existe é a necessidade de tratar o tema com a mesma disciplina técnica aplicada a qualquer etapa crítica de processo: análise de riscos, barreiras múltiplas, monitoramento e melhoria contínua.

Quando a engenharia de utilidades, o time de meio ambiente e a área de qualidade trabalham juntos, o resultado é um sistema de reuso que reduz custos, protege recursos hídricos e preserva – ou até fortalece – os níveis de segurança e qualidade do produto final.