Gestão sustentável de produtos químicos: do recebimento ao descarte responsável dentro de cadeias industriais complexas

Gestão sustentável de produtos químicos: do recebimento ao descarte responsável dentro de cadeias industriais complexas

A forma como sua planta lida com produtos químicos, do caminhão na portaria até o descarte final, já não é apenas um tema de segurança ou de meio ambiente. É um tema de competitividade. Em cadeias industriais complexas, onde um mesmo insumo passa por várias unidades, terceiros e etapas de processo, a gestão sustentável de produtos químicos virou um diferencial mensurável em custos, performance e conformidade.

Quando falamos em “sustentável” aqui, não é só sobre ser mais “verde”. É sobre reduzir perdas, evitar acidentes, cortar gastos com tratamento e descarte, simplificar auditorias e fortalecer a imagem da empresa junto a clientes e órgãos reguladores.

Vamos percorrer, etapa por etapa, o caminho do produto químico dentro da indústria – recebido, armazenado, utilizado, movimentado e finalmente descartado – e ver onde estão as oportunidades práticas de melhoria.

Por que a gestão sustentável de produtos químicos ganhou tanta importância?

Alguns movimentos recentes explicam por que o tema saiu da área de EHS e entrou na pauta da diretoria:

  • Pressão regulatória crescente: licenciamento ambiental mais rigoroso, fiscalização de resíduos perigosos, exigência de rastreabilidade e conformidade com normas (ABNT, CONAMA, NR-20, NR-26, entre outras).
  • ESG e cadeias de suprimentos globais: grandes clientes pedem evidências de boas práticas químicas, de FISPQ atualizadas a planos de emergência, passando por rotulagem GHS e certificações como ISO 14001.
  • Custo do desperdício: cada litro de produto químico perdido – por vazamento, degradação em estoque ou dosagem excessiva – vira custo direto em produto, tratamento de efluentes, descarte e até parada de produção.
  • Risco reputacional e de continuidade: incidentes com produtos químicos geram manchetes negativas, embargos, processos e, em casos mais graves, paralisação de operações.

Em outras palavras: gerir produtos químicos de forma sustentável é reduzir risco e custo, ao mesmo tempo em que se aumenta previsibilidade e desempenho operacional.

Mudando o olhar: de “perigo” a “ativo estratégico”

O primeiro passo é mudar a mentalidade. Produtos químicos não são apenas um “mal necessário” ou “fonte de risco”. Eles são ativos que:

  • Geram valor (quando usados corretamente, na dose certa, no ponto certo);
  • Consomem capital (estoque parado, validade vencida, compras emergenciais);
  • Carregam risco (segurança, ambiental, legal).

Gestão sustentável significa maximizar o valor e minimizar o risco em todo o ciclo de vida. Isso só é possível se você tiver:

  • Inventário confiável: saber quanto tem, onde está e qual é a validade de cada produto;
  • Rastreabilidade de lote: conseguir dizer onde cada lote foi usado, gerando que tipo de resíduo e em qual etapa do processo;
  • Dados de uso: consumo por unidade, por turno, por equipamento, permitindo enxergar excessos, desvios e oportunidades de otimização.

Sem essa visão, qualquer tentativa de “tornar a planta mais sustentável” vira um conjunto de ações isoladas, pouco conectadas com o dia a dia da operação.

Recebimento: onde a sustentabilidade realmente começa

Se o produto entra errado, tudo depois tende a dar errado também. O recebimento é o ponto ideal para filtrar riscos, organizar informações e evitar problemas lá na frente.

Alguns pontos críticos nessa etapa:

  • Homologação de fornecedores: checar não só preço, mas também:
    • Regularização ambiental e de transporte;
    • Condições de embalagem e rotulagem (GHS);
    • Capacidade de fornecer FISPQ atualizada e certificações quando aplicáveis.
  • Conferência de documentação na chegada:
    • FISPQ conforme ABNT NBR 14725 (idealmente em versão digital já integrada ao seu sistema);
    • Notas fiscais alinhadas com o produto efetivamente entregue;
    • Certificados de análise quando o processo exigir especificações críticas.
  • Inspeção física:
    • Integridade de tambores, bombonas, totes ou caminhões-tanque;
    • Ausência de vazamentos, corrosão ou sinais de incompatibilidade química;
    • Verificação de rótulo, pictogramas de perigo e prazos de validade.

Uma prática simples e muito eficiente é usar um checklist de recebimento padronizado, assinado pelo almoxarife ou técnico responsável, com campos específicos para:

  • Conformidade de documentação;
  • Condições de embalagem;
  • Local de armazenamento designado;
  • Registro do lote em sistema (ERP ou planilha estruturada).

Esse controle parece burocracia, mas é ele que evita a entrada de produtos não conformes, sem FISPQ ou mal rotulados, que se tornam um passivo dentro da planta.

Armazenamento inteligente: menos perdas, mais segurança

Depois de recebido, o produto químico passa boa parte da vida útil em estoque. É nesse período que ocorrem muitas perdas silenciosas: degradação, vencimento, evaporação, contaminação cruzada.

Algumas boas práticas com impacto direto na sustentabilidade:

  • Segregação por classe e compatibilidade:
    • Separar ácidos de bases fortes;
    • Oxidantes de materiais orgânicos ou combustíveis;
    • Inflamáveis em área dedicada, ventilada, com contenção adequada.
  • Bacias de contenção e pisos impermeáveis:
    • Evitar que pequenos vazamentos se tornem grandes passivos ambientais;
    • Facilitar a coleta e destinação de eventuais derramamentos.
  • Controle de estoque por validade (FEFO – First Expire, First Out):
    • Configurar o fluxo físico para que os produtos com vencimento mais próximo sejam consumidos primeiro;
    • Acompanhar estoques “lentos” que correm risco de vencer parados.
  • Identificação clara e padronizada:
    • Rótulos legíveis, com nome comercial e técnico, pictogramas de perigo, concentração e lote;
    • Códigos de barra ou QR Codes para integração com sistemas digitais.

Em cadeias industriais complexas, com vários almoxarifados ou unidades, vale a pena centralizar a visão do estoque em uma ferramenta única. Isso permite realocar produtos entre unidades antes do vencimento e reduzir compras desnecessárias.

Uso no processo: eficiência química é eficiência ambiental

Na etapa de uso, a grande pergunta é: estamos usando mais produto do que realmente precisamos?

Dosagens excessivas, pontos de aplicação inadequados e falta de controle em linha geram:

  • Consumo químico maior que o ótimo de processo;
  • Maior carga poluidora em efluentes (para ser tratada depois);
  • Risco de incrustações, corrosão ou problemas de qualidade de produto final.

Uma abordagem sustentável passa por:

  • Monitoramento de parâmetros críticos:
    • pH, condutividade, ORP, turbidez, dureza, alcalinidade, entre outros, dependendo do processo;
    • Uso de instrumentação on-line para automação de dosagem quando aplicável.
  • Ensaios de otimização de dosagem:
    • Jar tests em tratamento de água e efluentes para ajustar coagulantes e floculantes;
    • Curvas de desempenho para inibidores de corrosão, biocidas, antiespumantes etc.
  • Treinamento de operadores:
    • Entender o porquê de cada produto e a consequência de “colocar um pouco a mais só para garantir”;
    • Reforçar a leitura de FISPQ e instruções de manuseio seguro.
  • Substituição por produtos de menor impacto (quando tecnicamente viável):
    • Formulações menos tóxicas, mais biodegradáveis ou com menor teor de metais pesados;
    • Produtos de maior eficiência por unidade de massa (fazer mais com menos).

Um exemplo típico: em sistemas de tratamento de água de caldeiras, um programa bem ajustado de condicionamento químico reduz purgas, economiza água e energia e diminui o volume de efluentes gerados. Isso é sustentabilidade aplicada diretamente à operação.

Movimentação interna e rastreabilidade em cadeias complexas

Em indústrias com várias unidades, terceirizados e plantas satélites, os produtos químicos raramente fazem um trajeto simples. Muitas vezes eles:

  • Entram por um almoxarifado central;
  • São fracionados em embalagens menores;
  • Seguem para setores distintos, inclusive fora da planta principal;
  • Retornam na forma de resíduos ou embalagens vazias.

Sem rastreabilidade, você perde o controle de onde cada litro foi parar – e isso complica investigações de não conformidades, auditorias e até recalls de produtos químicos.

Boas práticas para essa etapa incluem:

  • Mapeamento dos fluxos internos:
    • Desenhar o “mapa de viagem” típico de cada produto químico dentro da organização;
    • Identificar pontos de transferência, fracionamento e uso compartilhado.
  • Identificação por lote em todos os pontos:
    • Evitar perder a referência ao lote original nas embalagens menores;
    • Etiquetas resistentes, com QR Code e integração a sistemas.
  • Registro eletrônico de movimentações:
    • Entrada, saída e consumo registrados em ERP, LIMS ou sistema próprio;
    • Relatórios que mostrem consumo por área, por linha de produção ou por contrato.

Essa visão integrada facilita muito quando surge uma pergunta típica de auditor: “onde foi utilizado o lote X do produto Y e que resíduos ele gerou?”.

Gestão de resíduos químicos: de passivo caro a oportunidade

Mais cedo ou mais tarde, todo produto químico vira resíduo – seja diretamente, seja incorporado a um efluente, lodo ou subproduto. A pergunta chave é: com que qualidade e com que custo isso acontece?

Uma gestão sustentável de resíduos químicos passa por alguns pilares:

  • Classificação correta:
    • Identificar se o resíduo é perigoso ou não (por exemplo, com base na ABNT NBR 10004);
    • Avaliar características como inflamabilidade, corrosividade, toxicidade, reatividade.
  • Segregação na fonte:
    • Evitar misturar resíduos incompatíveis que inviabilizam reciclagem ou aumentam o custo de tratamento;
    • Manter embalagens, lodos, solventes, óleos, reagentes vencidos e outros fluxos separados.
  • Minimização de geração:
    • Rever pontos de dosagem excessiva ou vazamentos crônicos;
    • Otimizar procedimentos de limpeza para reduzir uso de solventes e lavagem de equipamentos.
  • Valorização quando possível:
    • Reciclagem interna ou externa de solventes, óleos, metais e outros componentes;
    • Coprocessamento em fornos de clínquer, quando permitido e tecnicamente adequado.
  • Destinação final com rastreabilidade:
    • Escolher empresas licenciadas, com documentação em dia;
    • Manter manifesto de transporte, MTR digital e laudos de destinação arquivados;
    • Aproveitar a Política Nacional de Resíduos Sólidos e programas de logística reversa quando aplicáveis às embalagens e insumos.

Uma visão integrada produto–resíduo mostra que investir em eficiência de uso na origem quase sempre custa menos que tratar o excesso na etapa final.

Documentação, normas e responsabilidade legal

Nenhum programa de gestão sustentável se sustenta sem uma boa base documental. Mas isso não significa empilhar pastas e planilhas sem uso prático – significa ter os documentos certos, atualizados e facilmente acessíveis.

Alguns elementos essenciais:

  • FISPQ atualizadas para todos os produtos:
    • Disponíveis em locais de uso, impressas ou em sistema digital;
    • Treinamento de equipes para interpretar os campos mais críticos (perigos, manuseio, EPI, resposta a emergências).
  • Rotulagem conforme NR-26 e GHS:
    • Padronizar ícones, frases de perigo e precaução;
    • Incluir idioma compreensível por todos que manipulam os produtos.
  • Programas e planos obrigatórios:
    • PGR e outros documentos de segurança ocupacional;
    • PGRS – Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, com foco em resíduos perigosos;
    • Procedimentos operacionais padrão (POPs) para manuseio, fracionamento, limpeza e emergências químicas.
  • Treinamentos e registros:
    • NR-20, NR-26 e outras NRs aplicáveis às atividades com inflamáveis, combustíveis e produtos perigosos;
    • Registros de participação, avaliações e reciclagens periódicas.
  • Integração com sistemas de gestão:
    • ISO 14001 (meio ambiente) e ISO 45001 (segurança e saúde) como estruturas para organizar processos e evidências;
    • Indicadores claros: consumo específico de insumos químicos, geração de resíduos por tonelada produzida, taxa de reaproveitamento etc.

Quando a documentação está organizada e refletida na prática do dia a dia, auditorias deixam de ser um pesadelo e viram oportunidades de enxergar pontos cegos e aprimorar processos.

Roteiro prático para avançar na gestão sustentável na sua planta

Se a sua realidade hoje é “sabemos que precisamos melhorar, mas não sabemos por onde começar”, uma boa abordagem é estruturar um roteiro simples, mas efetivo. Por exemplo:

  • Mapear os principais produtos químicos:
    • Focar inicialmente nos de maior volume, maior periculosidade ou maior custo;
    • Listar onde são usados, quem é responsável e que resíduos geram.
  • Revisar o recebimento e o armazenamento:
    • Criar ou atualizar o checklist de recebimento;
    • Rever layout de estoque, segregação, contenção e identificação.
  • Implantar inventário confiável:
    • Registrar lote, validade e localização de cada item;
    • Definir frequência de inventários físicos e reconciliação com o sistema.
  • Escolher um processo-piloto para otimização de uso:
    • Por exemplo, tratamento de água, linha de pintura, limpeza CIP;
    • Medir consumo, ajustar dosagens, monitorar resultados e documentar ganhos.
  • Organizar a gestão de resíduos químicos:
    • Classificar e segregar corretamente;
    • Rever contratos de destinação e possibilidades de reciclagem ou coprocessamento.
  • Treinar equipes-chave:
    • Almoxarifes, operadores, manutenção, laboratório e segurança;
    • Focar em procedimentos práticos, não apenas em teoria.
  • Definir indicadores e metas:
    • Redução percentual de consumo de um insumo específico;
    • Redução de resíduos gerados; aumento da taxa de reaproveitamento;
    • Zero acidentes ou incidentes com determinado produto em um período.

Com esse tipo de roteiro, a gestão sustentável de produtos químicos deixa de ser um “projeto grande demais” e passa a ser uma sequência de passos claros, com resultados que podem ser medidos e apresentados em reuniões de produção, comitês de ESG e visitas de clientes.

No fim, o que diferencia as empresas que avançam nesse tema não é ter o diagrama mais bonito no papel, mas sim transformar cada etapa – do recebimento ao descarte – em decisões diárias melhores: menos desperdício, mais controle, mais segurança e mais valor gerado por cada tonelada de insumo químico que entra na sua planta.