Aplicação de química de superfície na melhoria de processos de clarificação e filtração em sistemas de tratamento de água

Aplicação de química de superfície na melhoria de processos de clarificação e filtração em sistemas de tratamento de água

Quando falamos em clarificação e filtração em sistemas de tratamento de água, a maioria das pessoas pensa logo em bombas, tanques, filtros, válvulas. Mas, na prática, o que manda mesmo no desempenho desses processos é algo que não aparece a olho nu: a química de superfície.

Entender como as partículas se comportam na interface água–sólido é o que separa uma estação que “funciona mais ou menos” de uma operação estável, com turbidez baixa, filtros protegidos e menor custo com químicos e descarte de lodo.

Neste artigo, vamos olhar a clarificação e a filtração sob a lente da química de superfície, sempre com foco prático: como isso afeta a turbidez, o consumo de coagulante, a vida útil dos filtros e até a conformidade com normas como a Portaria GM/MS 888/2021.

Por que processos de clarificação e filtração falham na prática?

Se você trabalha com ETA ou tratamento de água industrial, provavelmente já viu alguns desses problemas:

  • Turbidez de saída “dançando” mesmo com dosagem de coagulante aparentemente estável.
  • Filtro de areia colmatando rápido, exigindo retrolavagens frequentes.
  • Consumo alto de coagulante e polímero, sem melhora proporcional na qualidade da água.
  • Carvão ativado ou filtros multimídia perdendo eficiência em pouco tempo.
  • Membranas (UF/RO) sofrendo fouling precoce e queda de fluxo.

Muitas vezes a causa raiz está menos no “equipamento errado” e mais em um ajuste inadequado da química de superfície: pH desalinhado, tipo de coagulante equivocado, polímero incompatível, ou simplesmente falta de entendimento de como as partículas interagem entre si e com os meios filtrantes.

A boa notícia: com alguns conceitos-chave de química de superfície bem aplicados, é possível transformar um sistema instável em um processo previsível e econômico.

Fundamentos de química de superfície que importam na ETA

Não é preciso virar físico-químico para operar bem uma estação, mas três conceitos fazem toda a diferença ao olhar clarificação e filtração:

1. Carga superficial das partículas

Argilas, matéria orgânica, óxidos metálicos e coloides presentes na água carregam, em geral, cargas elétricas na superfície (normalmente negativas em pH neutro). Essa carga cria uma repulsão entre partículas, impedindo que elas se aproximem e aglomerem.

É justamente essa repulsão que faz a “sopa” coloidal permanecer estável, mantendo turbidez alta e dificultando a sedimentação. O papel do coagulante é modificar ou neutralizar essa carga.

2. Potencial zeta

O potencial zeta é um indicador prático da estabilidade de uma suspensão. Simplificando:

  • Valores de potencial zeta muito negativos ou muito positivos → partículas estáveis, dispersas, pouca coagulação natural.
  • Valores próximos de zero → partículas menos estáveis, prontas para flocular e sedimentar.

Na prática, ajustar a química de superfície significa trazer o potencial zeta para uma faixa que favoreça a formação de flocos robustos, sem necessariamente chegar a zero absoluto (para evitar reprecipitação ou flocos fracos).

3. Hidrofobicidade e afinidade pela superfície do filtro

Além da carga, a “afinidade” da partícula pela água (hidrofílica) ou por superfícies sólidas/orgânicas (hidrofóbica) influencia muito:

  • Partículas mais hidrofóbicas tendem a aderir mais ao meio filtrante (areia, antracito, membranas).
  • Matéria orgânica natural pode recobrir partículas e superfícies, alterando a carga e a hidrofobicidade, o que muda totalmente o comportamento na filtração.

Ignorar esses fatores é operar no escuro. Entendê-los é ganhar controle sobre a clarificação e a filtração.

Como a química de superfície atua na coagulação e floculação

Coagulação e floculação são os “gatekeepers” do sistema: se aqui a química de superfície não está bem trabalhada, o filtro terá sempre que “apagar incêndio”.

Escolha do coagulante

Os coagulantes mais comuns (sais de alumínio, sais de ferro, PAC – policloreto de alumínio) atuam, principalmente, em dois mecanismos de química de superfície:

  • Neutralização de cargas: íons metálicos positivos aproximam-se das partículas negativas, reduzindo a repulsão eletrostática.
  • Varredura (sweep floc): formação de hidróxidos metálicos gelatinosos que “varrem” e incorporam as partículas em suspensão.

O tipo de coagulante e a faixa de pH de operação definem qual mecanismo predomina. Em águas com alta turbidez inorgânica, a varredura pode ser mais eficiente. Em águas de baixa turbidez e alta matéria orgânica, a neutralização precisa ser mais fina e combinada com polímeros adequados.

Importância do pH na química de superfície

O pH controla tanto a forma química do coagulante (espécies de alumínio ou ferro presentes) quanto a carga superficial das partículas. Pequenas variações podem derrubar o desempenho:

  • pH fora da faixa ótima → hidróxidos metálicos pouco solúveis, gerando flocos fracos ou excessivos, difícil de sedimentar.
  • pH muito alto ou muito baixo → mudança da carga de superfície das partículas e da matéria orgânica, exigindo dosagens maiores de coagulante.

Ajustar a alcalinidade e o pH antes da coagulação, com base no comportamento da água e do coagulante, é um dos pontos mais eficazes para “domar” a química de superfície.

Polímeros como ponte entre partículas

Os polímeros (cationicos, aniônicos, não iônicos) atuam principalmente por bridging (formação de pontes), ligando partículas entre si para formar flocos maiores e mais densos.

Aqui a química de superfície é crítica:

  • Polímero catiônico se liga melhor a partículas de carga negativa (caso típico em ETAs).
  • Polímero aniônico pode complementar coagulantes catiônicos, ajudando na reestruturação dos flocos.
  • Dosagem em excesso pode recobrir totalmente a partícula, inverter a carga e reestabilizar a suspensão – turbidez sobe novamente.

Em outras palavras: polímero não é “quanto mais, melhor”. É “quanto mais certo, melhor”, de acordo com a carga e a superfície das partículas tratadas.

Interação entre flocos e meios filtrantes

Após a clarificação, entramos no reino da filtração: areia, multimídia, carvão ativado, membranas. Aqui, a química de superfície segue governando o jogo, mas com outro foco: a interação floco–meio filtrante.

Tamanho e estrutura dos flocos

Flocos bem formados, com boa densidade e resistência mecânica, tendem a:

  • Ser retidos mais facilmente nas primeiras camadas do filtro.
  • Distribuir melhor a carga de sólidos ao longo do leito.
  • Gerar menor perda de carga e maior carreira de filtração.

Já flocos frágeis ou muito pequenos passam pelo filtro ou se quebram, penetrando profundamente no leito, aumentando a colmatação interna e encurtando o tempo entre retrolavagens.

Carga superficial do meio filtrante

Areia e antracito possuem características de superfície (carga, rugosidade, energia superficial) que influenciam:

  • A adesão dos flocos nas partículas de mídia.
  • A profundidade de penetração da carga sólida no leito.
  • O padrão de formação do “cake” superficial.

Em alguns casos, modificar a química de superfície da água (via coagulantes, condicionadores) altera o modo como o floco “enxerga” o meio filtrante. Isso pode ser a diferença entre um filtro que carrega 6 horas e outro que carrega 24 horas com mesma turbidez de entrada.

Carvão ativado e matéria orgânica

No carvão ativado, a interação de interesse é dupla:

  • Sorção de matéria orgânica (muitas vezes hidrofóbica) nos poros.
  • Retenção física de partículas, similar ao filtro de areia.

A presença de certos coagulantes e polímeros pode recobrir a superfície do carvão, reduzindo temporariamente sua capacidade adsortiva. Por outro lado, uma coagulação mal feita deixa passar matéria orgânica que compete com micropoluentes na adsorção. Em ambos os casos, a química de superfície está no centro do problema.

Membranas (UF, MF, RO): fouling é fenômeno de superfície

Em sistemas de membranas, praticamente tudo é química de superfície:

  • Partículas e coloides interagem com a superfície da membrana (carga, hidrofobicidade, rugosidade).
  • Matéria orgânica forma camadas de fouling orgânico.
  • Íons dissolvidos geram incrustações inorgânicas (scaling).

Modificar essas interações com pré-tratamento adequado (coagulação, filtração, controle de pH) e uso de antincrustantes é aplicar química de superfície na veia, com impacto direto em perda de fluxo, consumo de energia e frequência de limpeza química.

Exemplo prático: reduzindo turbidez e lavagens com ajuste de superfície

Imagine uma ETA de água superficial com as seguintes características:

  • Turbidez de entrada entre 20 e 80 NTU, com picos em época de chuva.
  • Coagulação com PAC em pH 7,0–7,2.
  • Filtro rápido de areia com carreira média de 8 horas.
  • Turbidez na saída variando entre 0,4 e 1,0 NTU.

Problemas relatados:

  • Oscilação de turbidez na saída pós-filtro.
  • Retrolavagens frequentes em dias de turbidez alta.
  • Consumo crescente de PAC ao longo dos meses.

Análises de laboratório mostram potencial zeta muito negativo imediatamente após coagulação em dias de turbidez alta, mesmo com dosagem maior de PAC. Em outras palavras, química de superfície ainda desfavorável: partículas continuam estáveis.

Ações baseadas em química de superfície:

  • Ajuste de pH de coagulação para faixa 6,4–6,6 em dias de turbidez alta, melhorando a especiação do alumínio.
  • Introdução de polímero catiônico de baixo peso molecular para reforçar a neutralização de carga e o bridging.
  • Otimização da mistura rápida e lenta para evitar quebra de flocos.

Resultados após otimização:

  • Turbidez de saída mais estável, entre 0,2 e 0,4 NTU, mesmo em picos de turbidez de entrada.
  • Carreira de filtração aumentando de 8 para 14–16 horas.
  • Redução de ~15–20% no consumo específico de PAC, mesmo com uso de polímero adicional.

Nenhum filtro novo foi instalado. Nenhuma grande obra civil. Apenas melhor controle da química de superfície aplicada aos processos já existentes.

Checklist prático para otimizar clarificação e filtração pela química de superfície

Para trazer esse tema para o chão de fábrica, vale usar um roteiro objetivo de avaliação:

  • Conhecer a variabilidade da água bruta:
    • Monitorar turbidez, cor, carbono orgânico total, alcalinidade e pH.
    • Identificar sazonalidade (chuvas, estiagem, eventos extremos).
  • Ajustar o coagulante à realidade da água:
    • Testar diferentes tipos de coagulantes (sais de alumínio, ferro, PACs de diferentes basicidades).
    • Realizar ensaios de jar-test com variação sistemática de dose e pH.
  • Calibrar o pH de coagulação:
    • Mapear a faixa de pH de melhor formação de flocos para cada condição de água.
    • Garantir controle operacional fino do pH nessa faixa.
  • Selecionar e dosar polímeros com base em química de superfície:
    • Escolher tipo (catiônico/aniônico/não iônico) em função da carga predominante das partículas.
    • Evitar sobre dosagem que leva à reestabilização da suspensão.
  • Observar o comportamento no filtro:
    • Acompanhar perda de carga, carreira de filtração e turbidez na saída.
    • Cruzar dados com eventos de alta turbidez na entrada e ajustes químicos feitos.
  • Revisar o protocolo de retrolavagem:
    • Verificar se o backwash remove adequadamente o “cake” formado.
    • Ajustar taxas e tempos de lavagem em função das características dos sólidos retidos.
  • Para sistemas com membranas:
    • Monitorar fouling (queda de fluxo, aumento de TMP) como reflexo da química de superfície.
    • OtimizAR pré-tratamento para reduzir carga coloidal e orgânica que chega às membranas.

Erros comuns ao lidar com química de superfície em ETA

Alguns deslizes são recorrentes e custam caro em performance e químicos:

  • Tratar coagulante como simples “produto de catálogo”
    Trocar coagulante apenas por preço, sem reavaliar pH ótimo, dose e interação com polímeros, costuma gerar surpresas desagradáveis no filtro.
  • Ignorar a alcalinidade
    Aplicar coagulantes ácidos em água com baixa alcalinidade sem correção adequada derruba o pH para fora da faixa ótima e compromete toda a química de superfície.
  • Usar polímero “porque sempre usamos assim”
    Polímero inadequado em tipo ou peso molecular pode até piorar a clarificação e envenenar filtros e membranas com flocos deformados e pegajosos.
  • Não correlacionar dados de processo
    Olhar apenas para a turbidez de saída, sem cruzar com pH, dose de coagulante, perda de carga em filtros e eventos de fouling, impede enxergar o quadro completo.

Tendências em química de superfície para tratamento de água

A pesquisa em química de superfície aplicada ao tratamento de água vem trazendo inovações que começam a aparecer em larga escala industrial:

  • Coagulantes e floculantes “verdes”
    Uso de polímeros de origem natural (como derivados de quitosana, taninos) funcionalizados para oferecer desempenho similar ou superior aos sintéticos, com menor impacto ambiental e melhor perfil de lodo.
  • Meios filtrantes modificados superficialmente
    Areias, antracitos ou mídias sintéticas tratadas para alterar carga superficial e hidrofobicidade, melhorando a captura de partículas específicas ou matéria orgânica.
  • Membranas com superfícies funcionais
    Membranas projetadas com superfícies mais hidrofílicas, com menor tendência a adsorver matéria orgânica, ou com grupos funcionais que repelem certos contaminantes.
  • Monitoramento em linha de potencial zeta
    Sistemas que medem indiretamente a estabilidade coloidal em tempo real para ajustar automaticamente dosagens de coagulantes e polímeros – uma aplicação direta de química de superfície à automação de ETAs.

Essas tendências apontam para um futuro em que controlar a superfície será tão rotineiro quanto controlar o pH ou a turbidez.

Por que vale a pena pensar “em superfície” no seu sistema

Quando se olha a clarificação e a filtração apenas como “tanques e filtros”, perde-se a chance de atuar no nível onde os fenômenos realmente acontecem: a interface entre água, partículas e meios filtrantes.

Trazer a química de superfície para o centro da estratégia traz ganhos práticos claros:

  • Redução do consumo de coagulantes e polímeros.
  • Carreiras de filtração mais longas e menor custo com retrolavagens.
  • Maior robustez do sistema frente a variações da água bruta.
  • Proteção de carvão ativado e membranas, com vida útil prolongada.
  • Maior segurança para atender limites de turbidez e cor em normas como a Portaria GM/MS 888/2021.

Em resumo, entender e aplicar conceitos de química de superfície não é “luxo acadêmico”: é ferramenta de engenharia para melhorar desempenho, reduzir custos e dar previsibilidade ao tratamento de água.

Se na sua estação a turbidez ainda surpreende, os filtros vivem no limite ou o consumo de químicos só aumenta, talvez seja a hora de trocar a pergunta de “quanto dosar?” para “como as superfícies estão interagindo neste processo?”. A resposta costuma ser muito mais reveladora.